terça-feira, 22 de setembro de 2009

O Livro didático de Português: Algumas reflexões

Prof. Luís Valente (1º semestre de 2007, texto elaborado para o tópico: materiais didáticos e o ensino de Português; de uma das aulas da disciplina prática de ensino de português - UFPA)

A presença da literatura didática nas escolas brasileiras: aspectos político-ideológicos

Rafael M. da Silva (2000), lembra que no Brasil a primeira manifestação da literatura didática se deu através de cartinhas manuscritas, mais tarde denominadas cartilhas, pelas quais os alunos tinham o primeiro contato com as letras. Era o tempo das cartilhas do ABC, geralmente elaboradas pelos pais ou pelo professor (“o mestre”), com intuito de ajudar na alfabetização dos alunos.
Com a chegada dos jesuítas no Brasil, chegaram também os primeiros livros didáticos (LD) vindos diretamente de Portugal. Nesse momento, o LD português, tido como material de ensino nas escolas brasileiras, contribuía não só para ampliar a visão de mundo de nossos alunos, mas também, deixava-os mais distante da realidade em que vivia. É nesse sentido que a perspectiva alienante do texto didático não é recente, mas confunde-se com sua própria história.
No Brasil, pode-se dizer, que a criação das primeiras editoras ocorreu por intermédio da vinda da família real para o Brasil a partir de 1908 e a tendência nacionalista instituída de 30 a 45. Por isso, costuma-se associar a política do livro didático (LD) a três fatores políticos: a Revolução de 30, o Estado Novo e a Revolução de 64 (SILVA, 2000).
Somente a partir da Revolução de 30, o livro didático (LD) nacional ganha destaque. Devido a crise de 29, o aumento de preço de LD estrangeiros favorece o fortalecimento do livro nacional pelos investimentos do café.
Nesse momento, Getúlio cria o Ministério da Educação e Saúde, para exercer maior controle sobre a educação. Em 1937 é criado o (INL) Instituto Nacional do Livro, para divulgar e tratar da distribuição de livros de interesse cultural e educacional. Um ano depois através do decreto-lei 1.006 de 30 de dezembro de 1938, cria-se a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), que além de analisar a qualidade e o conteúdo dos livros didáticos, “estabelece as condições de produção, exportação e utilização do (LD)”.
Para Bárbara Freitag (at, alii) a criação da CNLD “insere-se em rol de medidas visando a reestruturação e o controle ideológico de todo o sistema educacional brasileiro” (1989 p. 24).
A preocupação de Freitag procede, uma vez que a maioria dos artigos do decreto-lei 1006/38, que estabelecem as condições de uso do LD, referem-se mais à questões político-ideológicas que didático-pedagógicas.
A partir da revolução de 64, a educação brasileira se vê submetida a interesse internacional dos Estados Unidos, através dos acordos entre MEC e USAID (United States agency for Internacional Development – Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional), que tinham como lema: “A união pelo progresso”. Desse convênio entre MEC e USAID surge a COLTED (Conselho do Livro Técnico e Didático), órgão colaborador da “Aliança pelo progresso”.
Em 1966, Castelo Branco retira a menção à “Aliança pelo progresso” e a COLTED passa a se chamar “Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático”. Um ano depois o MEC firma acordo com o SNEL (Sindicato Nacional dos editores de Livros) e a USAID, para a distribuição gratuita de livros à estudantes e bibliotecas.
Nesse período, as editoras se submeteram ao controle de produção didática, mas, em contrapartida, todos os livros didáticos eram comprados pela COLTED. Na verdade Moacyir Góes (1986), afirma que a intervenção dos Estados Unidos na educação brasileira foi uma espécie de “golpe na educação brasileira”, pois com uma ação camuflada de “assistência técnica” acabavam criando laços com os países pobres a fim de prevenir a proliferação da doutrina comunista.
Em junho de 1971 a COLTED, alvo de sérias denúncias de corrupção é extinta e surge em seu lugar o INL (Instituto Nacional do Livro) e a FENAME (Fundação Nacional do Material Escolar), que de certa forma continuaram os trabalhos da COLTED, porém sem a intervenção direta da USAID.
Não desaparecendo as denúncias de corrupção agora contra a INL e a FENAME é fundada a FAE (Fundação de Assistência ao Estudante) em 18 de abril de 1983. Em 1994 a FAE começa uma experiência empregando professores para ajudarem na seleção do LD.
Com o advento da Nova República a política do LD se condiciona ao processo de transição de um regime autoritário para um regime democrático. A prova disso é a criação em 19 de agosto de 1985 do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) que subordinado ao FAE amadurecem a idéia de professores na escolha dos livros didáticos.
Entretanto, a nova ordem político econômica do Brasil não trouxe através do PNLD melhoria na qualidade pedagógica do LD e nem na formação de professores.
Em 05 de agosto 1993 o MEC cria emendas ao documento de 1985, instituindo o GT (Grupo de Trabalho) para avaliar o conteúdo e os aspectos pedagógicos metodológicos dos livros mais demandados dos professores à FAE. Os resultados dos trabalhos do GT foram publicados no livro “Definição de critérios para a avaliação de livros didáticos” que contaram com a contribuição de Leonor Scliar Cabral e Paulo Bernadez Vaz.
A partir de 1997 o MEC vem publicando o “Guia do Livro Didático de 1ª a 8ª Série”, contendo critério sobre: o trabalho com o texto, leitura, produção do conhecimento lingüístico, etc. e também “princípios e critérios para a avaliação dos livros didáticos de 1ª a 4ª série”, através da Secretaria de Educação Fundamental (SEF).
Portanto, o livro didático sempre esteve a mercê dos interesses lucrativos das editoras e também como instrumento mediador de propagação da ideologia do estado.

A articulação do livro didático do Português (1ª a 8ª série)

Diante de uma análise mais rigorosa acerca da articulação do LD, pode-se observar uma desarticulação em três níveis: no primeiro nível, a falta de articulação se manifesta dentro de uma mesma unidade que geralmente é estruturada da seguinte forma: leitura, entendimento do texto, gramática e redação.
Para Silva e outros (in: CHIAPPINI, 1998), essas atividades não se integram, pois o texto é escolhido como “pretexto” para trabalhar a leitura e muitas vezes não é o mesmo para o estudo da gramática e nem para a proposta de redação. Nem sequer as temáticas dos textos empregados nas diferentes atividades de uma unidade, tem algo em comum, o que poderia representar um sinal de coerência entre as partes de uma mesma unidade.
Já como relação entre unidades de um mesmo livro, observa-se a ausência de uma mesma seqüência lógico-didática capaz de sequüenciar os conteúdos. Muitos conteúdos, por exemplo, estudados na Unidade I, aparecem na Unidade IV como algo novo, isto é: “Não se nota a preocupação em resgatar os conhecimentos e as experiências aprendidas para o estudo de novos conteúdos. Tudo é visto de forma homogênea e sob a mesma abordagem”, (SILVA et alii In: CHIAPPINI, 1998 p. 57).
A desarticulação se faz presente até mesmo numa coleção didática. Assim como a desarticulação entre as unidades cria no aluno a noção de um estudo estático, entre os volumes de uma coleção não é diferente, muito embora o autor tenha possibilidade de uma visão holística sobre a progressão do grau de dificuldade entre diferentes séries de sua obra. Nesse sentido, Ana Silva e outros argumentam: “se é para retomar, numa mesma série, conteúdo estudado na série anterior, que isso se faça não só para efeitos de revisão, mas também como forma de integração com o que vai ser desenvolvido, a fim de se progredir no nível de dificuldade”, (in: CHIAPPINI, 1998 p. 58).



Uma análise crítica sobre a proposta de ensino do Português no livro didático

A leitura
Antes de qualquer proposição sobre a leitura no LD, faz-se necessário a abordagem de algumas questões básicas para se compreender as limitações do ato de ler no âmbito escolar.
Para Bernstein (1977), ocorre um processo de “pedagogização” de qualquer discurso para se transformar em material didático. Nesse processo os discursos são recontextualizados, isto é, são descontextualizados a serviço do ensino.
Magda Soares (in: BRADÃO, 2003, p. 22) alerta: “não há como ter escola sem escolarização”. Para a autora, não se deve negar a escolarização, mas a escolarização inadequada dos textos que ao se transformarem em didáticos perdem sua amplitude.
Com base nesses autores, já se pode ter uma visão mais ampla do porquê a leitura anda em crise na escola e qual o papel do LD nesse contexto. Na verdade, didatização e descontextualização andam de mãos dadas no LD, o que desfavorece a leitura como construção de sentidos. Isto é comprovado nas pesquisas de SILVA e outros (op. cit.), quando a respeito da leitura na escola, aparecem 87% como mecânica e apenas 13% como dialógica.
A mesma autora ressalta que: “a falta de motivação pela leitura está diretamente ligada ao processo de descontextualização que sofrem os textos no LD” (op. cit. p. 65).

A produção de textos
A produção textual como propõe o LD não apresenta interlocutores. Lívia Suassuna (2003), declara que na produção de textos na escola os alunos não se sentem sujeitos de sua linguagem “na medida em que fazem ‘redações’ para um único interlocutor – o professor (...) aquele “inquisitor’ que transforma a interlocução possível numa caça aos erros”, (p 43).
Embora alguns livros, diga-se os mais recentes, tenham apresentado a noção de produção textual numa perspectiva dialógica e como práticas sociais, na maioria das vezes ainda se evidencia “a prática de uma escrita sem função, destituída de qualquer valor interacional, sem autoria e sem recepção (apenas para exercitar)”, (ANTUNES, 2003 p. 26-27).

A oralidade
Na maioria dos livros didáticos não se observa uma atividade objetiva e bem planejada a respeito da oralidade. Há “uma quase omissão da fala como objeto de exploração escolar, (ANTUNES op. cit. p. 24). Na maior parte dos casos isso acontece pela crença surrealista de que os usos orais são palcos de violação gramatical e portanto lugar de tudo o que é “errado” na língua. (vide, CASTILHO, 2003)

Os conhecimentos linguísticos
Este talvez seja o ponto mais cristalizado nos livros didáticos, pois os textos continuam sendo meros “pretextos” para o trabalho gramatical:
Continua-se trabalhando, nos livros didáticos com a gramática de forma mais tradicional, sem qualquer indício de incorporação coerente de conhecimento pela lingüística moderna que poderiam ser relevantes para o trabalho com a língua materna na escola.
(Maria Bernadete M. ABURRE, et alii, s. d.)

O livro didático e o ensino do Português
A prática de ensino subjacente ao LD, baseia-se no que Soares (1986) chamou de “mito de deficiência cultural”, pelo qual se justifica o uso do modelo educação bancária de transmissão de conhecimento pronto e acabado.
Com isso, no dizer de Ana Faria (2000), a escola através do “LD serve de manutenção dos interesses da classe dominante ignorando os interesses da classe operária”, (p. 92).
Entretanto, não se pode negar o papel dialético da escola, o poder que ela tem de ativar a consciência crítica dos alunos. Isso seria possível, por exemplo, através da perspectiva progressista de criação de propostas pedagógicas alternativas ao LD.

A regionalização do livro didático
A proposta de descentralização editorial do LD como uma possível solução para o hiato criado entre o aluno e a realidade, é polêmica. Para os adeptos da pedagogia libertadora a regionalização do LD seria um passo para a resolução do problema. Entretanto, alguns educadores têm manifestado contra a descentralização do LD. Segundo estes, o baixo nível de qualificação dos agentes educacionais poderia ocasionar improvisação ou banalização do LD.
Vale dizer que essa proposta possui muitas variáveis de ordem política e econômica, uma vez que as editoras como empresas capitalistas jamais irão abrir mão de um lucro tão generoso que é a produção didática.

O professor e o livro didático
Pode-se observar que nem sempre a boa vontade do professor é suficiente para que ele possa redimensionar o uso do LD, pois é a realidade educacional do país que praticamente o obriga a utilizá-lo em classe. Na apresentação do livro Quem engana quem: professor X livro didático de Olga Molina (1988), Ezequiel Theodoro da Silva afirma que o professor é praticamente empurrado ao uso inocente do LD pelas péssimas condições materiais da escola, pela péssima condição salarial e de trabalho, além da pressão dos programas oficiais e das empresas editoriais.
Contudo, ainda parece ser o professor o “salvador da pátria” se acreditar na sua capacidade de redimensionar o uso do LD e sugerir outros recursos didáticos como complemento para sua prática.
Para Ana Lúcia Faria (1996) “o LD é um mal necessário, já que alguma forma facilita o trabalho do professor, que ganha tão pouco, precisa dar muitas aulas e não tem tempo para prepará-las como gostaria”, (p 80).
Em suma, estas reflexões críticas sobre os LD sugerem:
• Uma mudança metodológica por parte do professor, após assumir sua posição política com relação á educação e ser coerente com ela na sua prática;
• Melhoria da qualidade e reorientação da leitura dos textos (reverter o quadro criado pela escolarização do texto didático);
• Adequação dos conteúdos a realidade do aluno (perspectiva progressista);
• Adoção do trabalho com os gêneros do discurso (nova tendência de abordagem textual na escola) (vide MARCUSCHI, 2002; MAINGUENEAU, 2003)
• Interação entre ciência da linguagem (lingüística) e a ciência da educação (pedagogia), (melhoria na condição e qualificação do professor com ênfase à disciplina prática de ensino).

Referências bibliográficas:

ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
CHIAPPINI, Lígia (org.). Aprender a Ler e a Ensinar com Textos Didáticos e Paradidáticos. 3ª ed.São Paulo: Cortez, (Coleção Aprender e Ensinar com Textos, v. 2)
FARIA, Ana Lúcia. Ideologia no Livro Didático. 13ª São Paulo: Cortez, 2000. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 37).
FREITAG, Bárbara et ali. O Livro Didático em Questão: Cortez, 1989.
GERALDI, João W. O Texto na Sala de Aula. São Paulo: Assoeste, 1985.
SILVA, Rafael M. da. Textos Didáticos: crítica e expectativa. Campinas/SP: Alínea, 2000.
SUASSUNA, Lívia. Ensino de Língua Portuguesa: uma abordagem pragmática. 6ª ed.

Um comentário:

  1. O texto de Luis Valente é bem elucidativo, ajudando em muito a se ter uma visão crítica sobre esse tão importante instrumento didático. Shirlei.

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